O verdadeiro peso de estar acima do peso
Ser gordo não é só estar acima do peso. Quilos extras e
vergonha do corpo trazem riscos para a saúde, além de preconceitos. Mas
já tem muitas pessoas por aí trabalhando para mudar isso - e você pode
se juntar a elas
por Mirella Nascimento
Um bebê que precisa mamar só consegue avisar a mãe que está com
fome quando começa a chorar. Para ela, logo fica claro quando o choro é
de fome. É que, se a criança parou, é porque está satisfeita. Quando
cresce um pouco, a criança aprende a pedir por comida. Mas o sinal de
saciedade nem sempre é entendido: quantas vezes sua mãe insistiu para
que você continuasse comendo quando você não queria mais? Em algum
momento da vida, paramos de deixar que o corpo decida quando devemos
começar e terminar de comer. E tentar devolver a ele essa decisão pode
ser o primeiro passo na busca do peso ideal e saudável.
A ciência ainda não sabe explicar totalmente por que as pessoas engordam
a ponto de ficarem obesas. E também não encontrou a fórmula ideal de
perder peso com saúde. Em uma simplificação grosseira, engorda quem come
mais do que gasta de calorias. Mas essa não é uma conta exata e
qualquer um sabe que apenas dieta e exercícios não resolvem todos os
problemas. Existem milhares de dietas por aí, mas o número de gordos no
mundo só aumenta. "Não é só o excesso de comida que deixa alguém obeso.
São considerados diversos fatores, como a genética, que influencia o
metabolismo. Dormir pouco engorda, até ar-condicionado engorda - com
menores variações de temperatura, o corpo acaba gastando menos energia",
afirma o endocrinologista Alfredo Halpern, chefe do grupo de obesidade e
síndrome metabólica do Hospital das Clínicas de São Paulo e professor
da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP).
Antes de continuar, um parêntese: há uma diferença entre "gordo" e
"obeso". A medicina classifica como obesa pessoas com índice de massa
corpórea (IMC) acima de 30. Gordos são o que os médicos chamam de "acima
do peso", com IMC a partir de 25. Ou seja, alguém que não passou da
linha que classifica a obesidade, mas que ao se olhar no espelho
normalmente não se sente satisfeito com o próprio corpo. Segundo o
Ministério da Saúde, em 2006, quase 43% dos brasileiros estavam acima do
peso. Em 2009, esse número aumentou para quase 47%.
O peso na saúde
A relação direta entre o acúmulo de gordura no corpo e o desenvolvimento
de doenças como diabetes e hipertensão não foi completamente
esclarecida. Mas sabemos que o excesso de gordura interfere nas reações
químicas responsáveis por manter nosso corpo em funcionamento. Ele
aumenta a resistência à insulina (o que leva ao aumento de açúcar), além
do aumento do nível de triglicerídeos e colesterol em circulação.
Muitos médicos defendem que, por ser uma doença crônica, a obesidade
deve ser tratada com medicamentos pela vida toda, já que, uma vez obesa,
a pessoa sempre terá predisposição para engordar. Mas nem todos os
obesos, mesmo aqueles em nível mais alto, com IMC acima de 35,
desenvolvem outras doenças. "Existem os obesos metabolicamente normais,
que, por algum motivo, não desenvolvem hipertensão ou colesterol alto.
Mas isso acontece em 1 a cada 4 casos. O que não quer dizer que não
precisem emagrecer. Eles não estão livres de outros problemas de saúde,
como nas articulações (leia mais no quadro abaixo)", ressalta o médico.
Algumas correntes de estudos preferem não classificar todas as pessoas
acima do peso de doentes e se focar nos tratamentos dos problemas
específicos causados pelo excesso de gordura. Um estudo da Universidade
de York, no Canadá, analisou 6 mil americanos obesos durante 16 anos,
comparando o risco de mortalidade com o de pessoas dentro do peso, e
concluiu que obesos podem viver tanto quanto os magros e ser menos
propensos a morrer de doenças cardiovasculares. Para a autora, Jennifer
Kuk, professora da Faculdade de Cinesiologia e Ciências da Saúde de
York, a descoberta coloca à prova a ideia de que basta ser gordo para
precisar perder peso. A pesquisa revelou ainda que obesos que não tinham
prejuízos físicos e fisiológicos eram mais propensos a ser fisicamente
ativos e a manter uma alimentação equilibrada.
"Está claro que o peso é associado com o maior risco de algumas doenças,
mas as causas podem ser diversas", diz a nutricionista Linda Bacon,
autora do livro Health at Every Size (Saúde em Qualquer Tamanho, sem
edição em português). Linda não tenta negar, por exemplo, que doenças
como diabetes e hipertensão sejam mais comuns entre os gordos. "Mas um
estudo mostrou que mulheres obesas que haviam feito dietas tinham
pressão alta, enquanto as que nunca haviam feito tinham pressão normal",
relata. Cada vez mais especialistas concordam que dietas -
especialmente as mais restritivas, que cortam algum grupo de alimentos -
provocam mudanças no metabolismo, causam estresse e, muitas vezes,
resultam na volta do peso inicial quando terminam.
Isso, você entendeu direito. Fazer dieta pode ser pior do que permanecer
gordinho. Tentar perder peso e falhar pode ser bem mais perigoso do que
ficar em um patamar elevado e manter um estilo de vida saudável, com
exercícios físicos e dieta balanceada. Se o emagrecimento provocar o
chamado efeito sanfona, pior ainda: a pessoa perde músculos e gordura e,
ao engordar novamente, ganha apenas mais gordura.
Outras pesquisas vão além. Um relatório citado no livro de Linda
compilou dados de 26 estudos e concluiu que indivíduos acima do peso
estão vivendo mais do que aqueles de peso normal - na contramão de
afirmações de que as próximas gerações podem viver menos do que seus
pais em função justamente de doenças como a obesidade. Outros 15 estudos
feitos entre 1983 e 1993 reunidos pelo fisiologista Glenn Gaesser
mostram que perder peso pode até aumentar o risco de morte. No mesmo
período, segundo Linda, apenas dois estudos apontaram que a perda de
peso reduz o risco de morrer cedo e um deles diz que há o acréscimo de
11 horas de vida para cada libra perdida (o equivalente a 453,6 g). Ou
seja, você pode acabar gastando mais tempo para perder peso do que o
tempo que você vai ganhar de vida em função disso.
Gordura na cabeça
Não é só o corpo que sofre com o excesso de gordura e as variações de
peso. Psiquiatras identificaram doenças e distúrbios psicológicos
ligados à obesidade. Um dos mais comuns é o transtorno da compulsão
alimentar periódica (TCAP). De acordo com Adriano Segal, diretor de
psiquiatria e transtornos alimentares da Associação Brasileira para o
Estudo da Obesidade e Síndrome Metabólica (Abeso), 75% dos pacientes com
TCAP têm excesso de peso. Uma das causas possíveis é (de novo!) ter
feito dietas restritivas repetidas por anos. Deixar de comer proteína ou
carboidrato, por exemplo, pode provocar de desnutrição a transtornos
psiquiátricos.
Outros problemas vão de quadros depressivos e ociosos a bulimia nervosa,
passando por hiperatividade e bipolaridade. Para variar, as origens de
cada alteração não estão completamente esclarecidas. "Mas uma coisa é
certa: os problemas psiquiátricos não levam à obesidade. O caminho é
inverso. E, acredita-se, por causa do estigma, da qualidade de vida em
função dos remédios e de consequências resultantes de dietas
malsucedidas", explica Segal.
Estar acima do peso também influi no comportamento de outras maneiras. A
própria personalidade dos gordos pode ser diferente. Mesmo que não haja
indícios científicos de diferenças entre gordos e magros, existe a
figura do gordinho engraçado (quem nunca teve um colega de escola
engraçadão?). Para a psicóloga americana Judith Rich Harris, autora de
Diga-me com Quem Anda, os humanos têm a necessidade evolutiva de
encontrar um papel que renda uma boa posição no grupo, ganhando proteção
do mesmo sexo e atraindo o oposto. Para ela, é assim que o gordinho
vira o engraçado: usando o humor para chamar a atenção.
E, quando conquistam seu par, os gordinhos têm desempenho acima da
média. Uma pesquisa da Universidade de Erciyes, na Turquia, mostrou que
homens acima do peso são menos propensos à ejaculação precoce e tendem a
manter a relação sexual por 4 vezes mais tempo do que os de IMC normal.
Para os cientistas, a maior presença do hormônio estradiol, tipicamente
feminino, faz com que ele demore mais para chegar ao orgasmo.
Orgulho e preconceito
Longe dos consultórios, o estigma social contra o gordo é mais antigo do
que a preocupação com a saúde dos obesos. "Por volta do século 19, a
gordura passou a ser vista como uma característica de pessoas vistas
como `inferiores¿ ou `primitivas¿, incluindo africanos, mulheres e, nos
EUA, a classe trabalhadora e os imigrantes. Os médicos não se
preocupavam muito com o peso nessa época", diz a socióloga Amy Erdman
Farrell, professora do Dickinson College, na Pensilvânia, e autora do
livro Fat Shame (Vergonha de Gordo, sem edição em português), que traça
um histórico dos estigmas e preconceitos contra os gordos ao longo da
história. Antes disso, porém, a circunferência da barriga era
proporcional a riqueza e status. A figura de um homem gordo vestindo
fraque e cartola, chamada de "fat cat" ("gato gordo", em inglês), foi a
caricatura do poder por muitos anos. "Isso mudou especialmente no começo
do século 20, apesar de ainda vermos `fat cats¿ hoje", afirma Amy.
Mas, ainda hoje, são raros os espaços públicos adaptados para os gordos.
Da escola ao mercado de trabalho, quem está acima do peso é visto como
diferente. Uma pesquisa recente mostrou que mais de 70% dos empresários
brasileiros têm restrições para contratar obesos. "No restaurante, todo
mundo olha se você come como uma baleia. Pesquisas em diferentes países
confirmam a discriminação", diz Adriano Segal. Um estudo feito na
Inglaterra apontou que crianças preferem brincar mais com outras
crianças com deficiências físicas e mentais do que com colegas obesas.
Nos Estados Unidos, onde mais de 70% da população está acima do peso,
grupos tentam promover a aceitação do gordo. Entre o final dos anos 60 e
o começo dos 70, surgiram instituições como a Associação Nacional para
Acelerar a Aceitação dos Gordos nos EUA e a Associação pela Diversidade
de Tamanho e Saúde. Nas universidades, especialmente em grupos ligados à
sociologia e aos estudos de gênero, surgiram os pesquisadores
especializados em "fat studies" (estudos da gordura) - que não pesquisam
apenas os aspectos fisiológicos da gordura, mas a situação dos gordos
na sociedade.
Para o movimento Saúde em Todos os Tamanhos (Health at Every Size, ou
HAES), um dos mais influentes na área, é importante promover o bem-estar
na busca por uma vida saudável. "A Organização Mundial da Saúde define
saúde como o estado de completo bem-estar físico, mental e social, e não
simplesmente a ausência de doença. Para isso, é preciso respeitar a
maneira de comer e o corpo", afirma Marle Alvarenga, nutricionista,
professora da USP e coordenadora do Grupo Especializado em Nutrição e
Transtornos Alimentares, que trabalha com o paradigma do HAES no Brasil.
O HAES questiona a forma como se trata a obesidade no mundo e promove a
saúde combatendo as dietas e incentivando uma alimentação saudável e a
prática de exercícios. Além disso, prega que se deve respeitar as
sensações de fome e saciedade, comendo quando o corpo pede e parando
antes de se sentir estufado - como quando você era bebê e só mamava.
Quando o assunto é atividade física, não se resume a academia e corrida.
"É preciso encontrar o que gosta e ser ativo. Mas se mexer pode ser
dançar, ir até o ponto de ônibus no caminho do trabalho todos os dias. O
que não pode é ter uma vida sedentária", diz Marle.
Com essa mudança de paradigma, as pessoas acabam encontrando seu "peso
de equilíbrio" - o que, para muitos, resulta em emagrecimento, já que é
comum estar com o corpo "desregulado". Uma pessoa muito obesa, que tenha
mudado muito o metabolismo, dificilmente vai ter um peso de equilíbrio
baixo. Mas o peso bom é o que você consegue ter com boas práticas.
"Aceitação não significa desistir. Significa se mexer para prestar
atenção nas coisas mais importantes e naquelas coisas que você tem poder
de mudar. Quando as pessoas odeiam seu corpo, fazem piores escolhas de
saúde", resume a nutricionista Linda Bacon. Antes de querer mudar de
peso, é preciso entender seu corpo.